zerozerozero

segunda-feira, março 24, 2003


Ainda não terminei de ler, desse mesmo Las Armas Secretas, El Perseguidor e o conto que dá título ao livro, mas até o momento o melhor é o Los Buenos Servicios. Não é nem o melhor formalmente, nem o mais bem escrito. É até o mais "careta", com o perdão da má palavra. Mas é o que tem uma das mais belas (ai, lá vem palavra cretina de novo. Vocês me desculpem, mas hoje eu tô ruim da cabeça), como ia dizendo, tem uma das mais belas "construções de personagem" que eu já vi num conto tão curto. Madame Francinet, uma senhora, doméstica, que um dia é contratada para a humilhante tarefa de tomar conta dos câes de uma família muito rica, durante uma festa.


Em Liliana Chorando, do Octaedro (ver comentário dia 16/3), Cortázar faz dois tempos entrarem em sincronia de forma surpreendente, e muito forte, com efeito emocional muito forte. Em Las Babas del Diablo é parecido. Um cara tá andando por aí, um fotógrafo. Ao mesmo tempo, quer dizer, ao mesmo tempo do conto (como é difícil explicar isso, e como é facil entender quando se lê, e como é bom!), o cara trabalha em casa, traduz qualquer coisa do espanhol para o francês. Andando na rua ele vê um casal. Faz algumas conjecturas e fotografa o casal. Ao tirar a foto, é surpreendido. Sua ação de fotografar modifica o destino daquelas pessoas naquele momento. Mais tarde, revelando as fotos, ele entende tudo diferente. E tudo se passa diferente. E de novo ele altera o curso das coisas ao fazer a foto.


O livro se chama Las Armas Secretas, também de Julio Cortázar, que ando relendo que nem um maníaco, por razões que no momento me escapam (provavelmente, só porque é muito bom mesmo). Estou lendo em espanhol. Entendo muito, mas não 100%, mas não paro pra checar dicionário. Leio como se fosse em voz alta, escutando e assim, mais que nas versões traduzidas, tenho a impressão de entrar melhor naqueles textos. Sabe quando se escuta alguém cantar e se abstrai o significado? quando se consegue escutar a voz humana como instrumento? pois é, é por aí. Vou comentar alguma coisa dos contos, ok?


terça-feira, março 18, 2003


Não é o fim, esquecer as coisas? eu às vezes tenho a sensação de que não me lembro de nada senão de uns jingles eleitorais que eu ouvi quando tinha 15 anos (em meados do século passado).

Hoje estava acontecendo um treco engraçado, que parece ser um inesperado efeito colateral de estar ficando desmemoriado. Inúmeras pessoas que eu via, para as quais olhava, me pareciam familiares.

Neurônios, sinapses.


segunda-feira, março 17, 2003


Tenho tido uma fantasia, cada vez mais frequente. Eu ando entre as pessoas, na rua ou num shopping. Eu pareço inofensivo. Mas na minha fantasia eu não sou inofensivo. Na minha fantasia, eu sou um matador de aluguel. Não um maltrapilho qualquer, matador de pobre, de invasor de terras, de ladrão. Não. Sou um matador especial, que só é acionado em casos especiais, que mata com frieza e tranquilidade. Eu sou quase a morte, a própria, na minha fantasia, e eu ando entre as pessoas pensando que elas ficam por aí, tratando dos seus afazeres, sem nem imaginar que eu as olho nos olhos, as sigo pelas escadas. Na minha fantasia, eu quase que atravesso as pessoas com meu passo de matador, com meus olhos de matador. E sou feliz de pensar que não mato porque não quero.


domingo, março 16, 2003


Liliana Chorando. Primeiro conto do livro Octaedro, de Julio Cortázar. 18 páginas e eu tive acessos de choro duas vezes. Um cara num hospital, presumivelmente na faixa dos 30, desenganado, escreve para passar o tempo. Ele acha que não pode estar a mais de uns poucos dias do seu enterro, e começa a descrever as ações dos amigos, da esposa (por quem é apaixonado), da mãe, do pai, do filho e principalmente de um amigo, Alfredo, que a todos consola (sem duplo sentido, por favor), que cuida de todos e de tudo. Ele começa narrando o enterro, depois conta dos amigos que vão beber e de como a primeira piada sai, ainda constrangida, entre eles. Passa pelos primeiros dias depois da sua morte, seu pai passando mais tempo com seu filho, reclamando que não consegue ensinar matemática pro menino. A mulher, Liliana, voltando ao trabalho. E Alfredo sempre presente, e um dia Alfredo toca o braço de Liliana e o rosto de Liliana, e ela chora, e "Liliana chorando era o término, a extremidade de onde ia começar outra maneira de viver". Puta que o pariu, só isso já era foda, mas tem mais. Os médicos entram no quarto do doente com exames novos e uma agitação incomum. Ele não vai mais morrer. Não vai mais morrer, e pensa: "vou ter de lhe pedir (ao médico) que espere um pouco, que espere ao menos até que seja dia antes de dizer a Liliana, antes de arrancá-la daquele sono em que pela primeira vez não está só, daqueles braços que a apertam enquanto dorme". O conto acaba aí, num gesto literário monumental, dois tempos narrativos se tocando, porque o tempo do homem no hospital ainda é o de antes daquilo tudo. O homem no hospital não está em sintonia com o mundo, está em sintonia com o seu caderno, com o que escreveu, com a ficção que criou, e na qual criou aquela vida futura.

Mil perdões pela canhestra descrição, pelos comentários rasos, que não estão nem de longe à altura do conto. Também não se pretendiam estar. Ando pensando em anotar tudo que leio, um parágrafo que seja, pra ver se não me esqueço.


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